Arquivo de Março, 2009

Começa a vida absurda

Pois é, meus amigos. Sou eu, o Homem Absurdo. Talvez estivessem à minha espera, ou talvez não. Mas o certo é que aqui estou. Cheguei.

Aposto que muitos pensavam que nunca mais me iam ver, ahn? AH! Enganei-vos bem! Paspalhos!

Mas o certo é que eu próprio também já duvidava que alguma vez cá chegasse. Afinal, tanto tempo assim, digamos, inexistente, isso faz um gajo começar a duvidar de tudo. Até de si mesmo.

Mas chega destes disparates. Divagar é aborrecido, o que é todo o contrário do absurdo. Portanto vamos acabar com isso.

O que me interessa agora é a vida exterior, experiências, relações, tudo isso – sangue e fogo. Vinho é que não pode ser, o que é pena. Mas não é grave. Mais vale absurdo e sóbrio que alcoolizado e sombrio.

Afinal, se quisesse a vida interior ia para um convento, não é verdade? O que, confesso, me chegou a passar pela cabeça. Afinal, ficava bem com o meu percurso de personagem de romance russo. O Ivan Karamazov e tudo isso…

Mas enfim, não cheguei a ir. E agora acho que já passou a altura. Talvez mais tarde.

Então pensei: se não vou para um convento nem desafio ninguém para um duelo (uma hipótese sempre excitante, mas infelizmente demasiado passé  para pôr em prática), o que é que faço? Também podia simplesmente enfiar uma bala na cabeça, como um bom russo, ou ir dançar com um urso.

O problema é que os ursos são difíceis de arranjar (os que sabem dançar uma mazurka decente, pelo menos) e dar um tiro na cabeça sem ser iluminado por uma vela de sebo seria simplesmente patético. E as velas de sebo são ainda mais difíceis de arranjar que os urso dançarinos, simplesmente já não se fabricam. Suponho que passaram de moda, como os duelos. Uma treta, este mundo moderno.
Restava-me a hipótese da tísica. Afinal, nada como uma boa tísica, não é verdade? Mas faltavam-me dois ingredientes fundamentais: as velas de sebo (sempre um problema) e a amante devota e famélica, que trataria de mim no casebre imundo, indiferente à pobreza confrangedora.

Sem velas de sebo e sem amante famélica não se pode ter uma boa tísica. Além disso, creio que me vacinaram contra isso. Teria que confirmar nos meus muitos boletins de vacinas, mas estou convencido que sim.

Portanto, nem tísica, nem duelo, nem bala na cabeça, nem urso dançarino. Que restava, então?

A resposta só podia ser uma: o salto para o absurdo. E foi isso que fiz. Fechei os olhos e saltei, sem pensar. Quando os voltei a abrir estava aqui. Era eu.

Olá. Bem-vindos à vida absurda. Ela está apenas a começar.

Entra o Homem Absurdo

homem-absurdo1Parecia uma noite igual às outras. Estava em casa, a ver um filme, aborrecido como um perú. De repente o telefone tocou. Levantei-me de um pulo para ir atender, qualquer desculpa seria boa para me fazer sair de casa.

Afinal era apenas uma mensagem da operadora. A dizer que podia falar até rebentar se activasse uma tarifa qualquer. Como se isso me interessasse. Até posso rebentar, mas não vai ser a falar de certeza absoluta.

Fechei o telefone com raiva da operadora, e só não o atirei contra a parede porque não tenho dinheiro para comprar outro. Afinal, não podemos ficar incontactáveis, não é verdade? Isso seria anti-social.

Voltei à cadeira e ao filme. Antes via-os no sofá, mas agora deixei de ver televisão. Vejo tudo no computador. Portanto, em vez de estar espojado no sofá, estou todo torcido na cadeira de escritório. Eu sei que parece ridículo, mas sinto-me muito melhor assim.

Passo a explicar: o sofá fomenta uma postura passiva, o que não é bom. Sentamo-nos ali para ver um filme ou um documentário, e vamos girando lentamente, normalmente no sentido contrário aos ponteiros do relógio, até acabarmos deitados a ver o filme de lado.

E quando estamos com o nosso ângulo de visão a 90º em relação à posição vertical do televisor, estamos perdidos. O sangue começa a deslizar todo para um dos lados, ensopa esse hemisfério (o esquerdo ou o direito, tanto faz) e começa tudo a entrar em pane.

É assim que nos sentamos um bocadinho para ver um programa de qualidade, do qual não nos envergonharíamos de falar aos nossos amigos, e acabamos por nos levantar quatro ou cinco horas mais tarde, num estado reminiscente de um zombie lobotomizado, depois de ter tragado tudo o que é escória televisiva e feito zapping até ao ponto da epilepsia.

Na cadeira de escritório nada disso acontece. É impossível deitarmo-nos numa cadeira de escritório, pelo que os nossos hemisférios continuam a ser irrigados de forma razoavelmente equilibrada.

E, além disso, estamos num ambiente de trabalho, o que é sempre bom. Podemos,por exemplo, ir passando os olhos pelas dezenas de newsletters que subscrevemos enquanto vemos o filme, o que é uma postura muito mais activa e impede o surgimento do zombie lobotomizado.

É claro que podemos acabar de ver a Lista de Schindler convencidos de que o Sr Schindler teve que fugir do país porque enganava o Estado nos impostos com o seu amante judeu, a quem oferecia jóias e outros presentes, mas isso é o menos. O que interessa é ser produtivo.

Enfim, estava eu a ser produtivo, quando toca a campainha. Odeio que toque a campainha. Ao contrário do telefone, que pode sempre esconder alguma surpresa agradável, a campainha raramente nos surpreende de forma positiva.

Afinal, quem é que vai aparecer de repente às dez da noite? Ninguém, como é evidente. Qualquer pessoa telefonaria primeiro. Portanto só pode ser alguma visita desagradável – um pedinchão qualquer ou, pior ainda, um daqueles comerciais das operadoras telefónicas a querer convencer-me a mudar de serviço. Como se eu já não odiasse suficientemente a minha operadora.

Além disso tenho uma igreja evangélica mesmo ao lado da porta. O que me levou a pensar que se calhar tinham começado a fazer visitas nocturnas, apostando que as pessoas são mais capazes de aceitar que o mundo foi criado em seis dias se estiverem convertidas no zombie lobotomizado. São mais espertos do que o que parecem, estes evangélicos.

Como não podia ser ninguém que eu quisesse ver, fiz o que costumo fazer nestas situações: nada. Fiquei simplesmente à espera que se fossem embora, o que resulta quase sempre. Tocam mais uma vez ou duas, mas depois desistem e deixam-me em paz.

Mas desta vez não foi assim. A seguir ao segundo toque veio um terceiro, e depois um quarto. Ao quinto toque não aguentei mais e fui ver quem era, a espumar de raiva.

Abri a porta de rompante, pronto para desancar o importuno, e fiquei petrificado. Afinal não era um comercial de uma operadora telefónica. Não era um evangélico. Era o Homem Absurdo.